Análise de “Pânico no Brooklyn”, de Gay Talese

Giovana Kebian
5 min readSep 29, 2020

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Gay Talese foi um dos grandes mestres da reportagem do chamado New Journalism ou novo jornalismo. O livro “Fama e Anonimato” reúne séries de célebres reportagens realizadas ao longo de sua carreira, especialmente aquelas publicadas na revista Esquire. A segunda parte do livro é dedicada a uma série de reportagens que Talese escreve quando acompanha a construção da ponte Verrazano-Narrows na década de 1960, que liga a região de Staten Island ao Brooklyn.

Em um trabalho de apuração quase etnográfico, suas reportagens tratam principalmente da vida dos trabalhadores na construção da ponte, os chamados boomers. No entanto, no segundo capítulo desta parte do livro, “Pânico no Brooklyn”, traz o perfil dos moradores que foram despejados de suas casas devido à construção da ponte.

“Seus FEDAPUTA!”, gritou o velho sapateiro italiano de pé na porta do escritório de desapropriações do Brooklyn lançando olhares raivosos aos homens sentados às mesas no fundo da sala. “Seus fedaputa!”, ele repetiu, vendo que ninguém o olhava.” (TALESE, G., 2009, p. 146)

Talese abre a reportagem com um diálogo, um dos recursos mais característicos do New Journalism. O “fedaputa” (cuja tradução provavelmente remete a uma gíria local no Brooklyn ou algo similar em inglês) mostra tanto um traço de classe social devido ao modo de falar “Seus fedaputa” no lugar de “Seus filhos da puta”, quanto um enorme descontentamento com a situação, que é representado, pela caixa alta da palavra.

A partir da situação específica do sapateiro, ele nos apresenta a problemática da situação nos parágrafos seguintes. Mas é justamente por abrir o texto de maneira inusitada que nos intriga a continuar lendo e entender o motivo da raiva do personagem. A história do sapateiro italiano é explorada ainda mais um pouco porque representa um dos perfis dos moradores do Brooklyn que estavam sendo despejados para a construção da ponte: o dos imigrantes italianos.

Em seguida, ele avança mostrando o impacto na vida dos moradores de Staten Island. Do outro lado da ponte, não havia reação às mudanças que vinham acontecendo. Apesar de claramente se opor à construção da ponte, Talese não argumenta contra ela. Ele descreve minuciosamente a pacata região de Staten Island e deixa o próprio leitor concluir que não havia sentido construir uma ponte para ligar o Brooklyn a uma região tão desinteressante:

“Embora os nova-iorquinos gostassem de fazer a travessia de barco para Staten Island — “um cruzeiro de luxo a um centavo por quilômetro” — na verdade ninguém estava interessado de chegar ao outro lado. O que havia lá para se ver? Até 1958, 60% de seus quilômetros quadrados estavam mergulhados no atraso. A maioria dos seus 225 mil cidadãos vivia em residências unifamiliares. Era o distrito mais insípido de Nova York, e quando um policial nova-iorquino caía em desgraça junto aos seus chefes, logo era transferido para Staten Island” (TALESE, G., 2009, p. 149)

Nesse sentido, podemos considerar que ele faz uso de um narrador em terceira pessoa, mas que não é totalmente “bege”, ou seja, que induz o leitor a seu ponto de vista.

Mais adiante no texto, ele retoma a situação no Brooklyn. Traz um panorama histórico sobre a polêmica quando diz que já havia antigamente boatos sobre a sua construção. É também nessa parte do texto, que Talese traça um perfil dos moradores do Bay Ridge, uma região oeste do Brooklyn:

“O resto de Bay Ridge era quase como as outras zonas residenciais do Brooklyn, exceto pelo fato de que havia poucos negros — se é que havia — vivendo entre os brancos. Os brancos eram em sua maioria católicos. As grandes igrejas, algumas com paróquias que chegavam a ter 12 mil almas, eram mantidas por irlandeses com fumos de classe média e italianos ambiciosos; eles também apoiavam políticas do Partido Republicano. Ainda havia por lá um grande número de suecos e dinamarqueses, além de muitos logistas sírios, velhos imigrantes italianos (amigos do sapateiro), mas eram os mais jovens (segunda e terceira gerações de italianos, ao lado dos irlandeses) que davam o tom geral de Bay Ridge. Os que ainda não eram ricos o bastante para merecer a orla moravam em casas menores, de tijolos marrom, coladas umas às outras em rua com renques de árvores, e disputavam todos os dias lugar para estacionar o carro junto ao meio-fio. Faziam compras em ruas com muito movimento na calçada, cheias de lojinhas suburbanas com apartamentos no pavimento superior; havia também muitos barzinhos nas esquinas(…)” (TALESE, G., 2009, p. 151)

Somente nesse trecho podemos ter conhecimento da origem, raça, preferência religiosa e política, ocupações, tipos de moradia, hábitos e costumes dos moradores de Bay Ridge.

Nos parágrafos seguintes, Talese discorre sobre a reação e a revolta dos moradores ao descobrirem que iam ser despejados. É somente no trecho final da reportagem que ele volta a se concentrar em um único personagem novamente. Nesse caso, ele conta a história Florence Campbell, uma das últimas moradoras a saírem do Brooklyn. Mas, um pouco antes de se adentrar à sua situação particular, Talese caracteriza outros perfis que viviam na região e foram embora e, para isso, ele faz uso do recurso de repetição, que é extremamente adotado pela literatura.

“Ela foi embora depois dos amantes, do dentista, de Bessie Gros Dempsey, ex-integrante da Ziegfield Follies (…); ela foi embora depois do homenzinho louco que teve que foi encontrado sozinho (…). Ela foi embora depois de Freddy Fredericksen, o lutador de boxe que só perdera duas lutas (…)” (TALESE, G., 2009, p. 155)

A partir daí ele passa a contar a história de Florence e podemos ver uma narrativa cena a cena, quase como se fosse um roteiro de um filme. Utiliza marcadores temporais típicos da narrativa como “no dia seguinte, bem cedo”, “certa manhã” e “algumas noites depois da recomendação do sargento”, ainda que a narrativa seja fruto da apuração e não ficcional. Ele volta a fazer uso dos diálogos para expressar a conversa de Florence com um sargento, que a aconselha a se mudar urgentemente, pois a região já estava deserta e passava a ser muito perigosa. E, por fim, no último parágrafo, Talese encerra a reportagem da seguinte maneira: “Ela correu para o apartamento e o alugou — e o proprietário não entendeu nada quando, depois de fechar o contrato, ela começou a chorar.” Ele termina o texto com essa frase, depois de já nos ter descrito toda a situação aflita que Florence Campbell estava passando por tardar a se mudar. Expõe ainda que o proprietário não entendeu porque Florence chorara, de novo utilizando a terceira pessoa, mas nós, leitores, sabemos e, assim, sentimos um grande alívio quando ela finalmente consegue um novo apartamento. Assim como é feito no cinema e na literatura, ele parece tentar criar uma relação de identificação entre leitor e personagem, quase uma cumplicidade, pois vemos a problemática da situação desde o início, acompanhando um período da vida de Florence.

Referência Bibliográfica

TALESE, G. “Pânico no Brooklyn” In: Fama & Anonimato. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 146–157.

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Written by Giovana Kebian

“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

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