Das Eurídices que habitam em nós

Giovana Kebian
2 min readMay 23, 2020

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Foi uma emoção grande quando mamãe me presenteou com o livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha. Essa história eu já guardava com carinho, após ter assistido ao filme de mesmo nome, durante a 64ª Semana Internacional de Cine da cidade de Valladolid, na Espanha. Se o longa de Karim Aïnouz já havia me deixado totalmente arrepiada no ano anterior, o livro serviu apenas para confirmar minhas certezas.

A vida invisível de Eurídice Gusmão traz a história de duas irmãs, Guida e Eurídice, filhas de imigrantes portugueses que vivem em Santa Teresa, no Rio de Janeiro da década de 1950. Após se desencontrarem, o livro percorre pela trajetória de cada uma, abordando desilusões amorosas, autoritarismo da família patriarcal, submissão feminina, prostituição e outras esferas do machismo.

O que mais me impressionou foi a habilidade de Martha na construção diversificada de personagens femininos e suas inquietudes: vai desde a fofoqueira Zélia à ex-prostituta Filomena que desempenha o papel de cuidadora no bairro do Estácio, passando, claro, pelos confrontos que vivenciam Eurídice (principalmente com Antenor) e Guida, após ser enganada, buscando dar as melhores condições de vida a Chico. O retrato diversificado das personalidades femininas mostra as várias complicações dominadas pelo machismo e estigmas sociais do Brasil de 1950, muitos deles herdados por nós até hoje.

Vi em A vida invisível de Eurídice Gusmão as restrições impostas a mim sobre minhas roupas, companhias ou comportamento, vi os medos e inseguranças que me assombravam quando era menina (e às vezes ainda me assombram), vi no relacionamento de Eurídice e Antenor, a relação ainda presente em muitos relacionamentos de companheiras. Mas foi também n’A vida invisível que me encontrei na "rebeldia" de Guida, na persistência de Eurídice ou ainda no cuidado e carinho de Filomena. O desencontro das irmãs, por outro lado, contribui para acentuar a solidão vivida por muitas mulheres, ainda que acompanhadas. Vi, enfim, um mar de Eurídices atuais, espalhadas em nosso cotidiano. Um mar de Eurídice a que ainda habitam em nós.

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Written by Giovana Kebian

“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

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