De volta ao capuz

Giovana Kebian
11 min readMar 21, 2021

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Por Giovana Kebian

“Como é, vamos a uma rodada de pôquer esta noite?”, disse uma voz grave, quase de locutor de rádio, do outro lado da linha. Quando atendeu o telefone, Álvaro Caldas não reconheceu quem havia ligado. Mas entrou no jogo para ver se surgia alguma pista. “Tudo bem, acho que podemos armar a mesa do carteado.” O bate-bola continuou por um tempo até que o mistério se desvendou: “É o Elias, cara”, disse a voz possante, soltando uma risada.

Quando a ligação terminou, Álvaro estava exausto, consumido por recordações de um período tão tenebroso. A conversa oscilou de tons, revisitou episódios incômodos da memória, mas também entrou em momentos de descontração. O ex-tenente se surpreendeu ao descobrir que o jornalista se tornara professor. Na época do telefonema, em outubro de 2003, Caldas estava lecionando no curso de Comunicação da PUC-Rio. Em êxtase, buscou encher um copo de whisky, acender um cigarro, enquanto o piano de Keith Jarrett embalava a trilha sonora daquele momento que misturava paz e ansiedade.

Elias, ex-tenente do Exército, havia servido no Regimento Sampaio 33 anos antes daquela conversa, na mesma época que Álvaro havia sido preso. O mesmo Elias que em uma noite entrara na cela dos presos para uma partida de pôquer, o que acabou resultando na sua expulsão do Exército. Mas a ligação, de certa forma, não era totalmente inesperada. Nesse mesmo dia, um pouco antes, Álvaro havia recebido em casa Erick, filho do ex-tenente. Motivado por uma busca do nome do pai no Google, o jovem acabou se deparando com o livro “Tirando o capuz”, publicado pela primeira vez em 1981 pela Codecri, editora do Pasquim. Nele, o jornalista relata a dura realidade experienciada por um preso político do regime militar. Álvaro também cita o nome do tenente Elias, como, nas palavras de Erick, “um homem da ditadura, que o ajudava e por esse motivo, foi expulso do Exército.”

Revisitar o passado quando se é um ex-preso político brutalmente torturado pela ditadura não é fácil. Mesmo para Caldas, que se propôs a escrever sobre o assunto e ainda teve o pioneirismo de publicar os detalhes das barbaridades exercidas pelos oficiais do Exército. Hoje, a trajetória de Caldas, tanto como jornalista crítico quanto como ex-militante político, é retomada em um momento em que o discurso de extrema-direita nega as atrocidades do regime militar e celebra torturadores como o Coronel Brilhante Ustra.

Álvaro Caldas. Foto: Memorial da Resistência de São Paulo

“Era uma fase de muita criatividade, expansão cultural, teatro, cinema, Cinema Novo, literatura, jornal, era um potencial incrível do Brasil e veio o golpe foder tudo, ‘cabou’ com todas nossas ambições.”

O “carioca nascido em Goiânia”, como ele mesmo se apresenta, veio para o Rio de Janeiro em 1962, prometendo ao pai que iria cursar Medicina, mesmo que já soubesse de sua vocação para a escrita. Mas o encantamento pela cidade veio de antes. Desde Goiânia, já torcia para o Vasco da Gama, time do coração que mais tarde foi homenageado em seu fusca vermelho, carinhosamente apelidado “Gigante da Colina”. Filho de pai médico e udenista, Álvaro conta ter crescido em um ambiente liberal, com muito rádio, jornal, teatro, livro, cinema, filmes, atrizes, futebol, tudo do Rio. “Em Goiânia, eu já era uma pessoa interessada no mundo, como dizia o poeta Drummond, eu tinha sentimento do mundo. A injustiça, a desigualdade, sempre me atingiram”, conta. Mas foi sua entrada na antiga Faculdade Nacional de Filosofia que fez com que se dedicasse verdadeiramente às questões da época. O ambiente efervescente da boemia carioca foi substituído por uma atmosfera de tensão política após o golpe de 1964, que depôs o presidente João Goulart.

“Era uma fase de muita criatividade, expansão cultural, teatro, cinema, Cinema Novo, literatura, jornal, era um potencial incrível do Brasil e veio o golpe foder tudo, ‘cabou’ com todas nossas ambições.” O antídoto para muitos jovens da época foi a militância política. Caldas foi um deles. Começou a sua trajetória no Partido Comunista do Brasil (PCB), mas em pouco tempo, as discordâncias dentro do Partidão o fizeram romper com a organização. Passou pela Dissidência Estudantil, presente em muitas cidades brasileiras, até se filiar ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), liderado por Mário Alves.

Hoje em dia, prefere não se envolver mais em organizações partidárias. “Desde que eu saí da prisão, eu me tornei meu próprio comitê central. Eu gosto de pensar por mim, decidir por mim, não quero nenhum partido interferindo nessas decisões. Ainda sim, continua acompanhando as movimentações políticas e tomando posição quando necessário. Em sua coluna semanal no Ultrajano — portal de jornalismo independente idealizado por José Trajano — política nacional e internacional costuma ser tema frequente. Também entra em discussões ferrenhas com sua ex-esposa, Suely Caldas, por conta de divergências. Neste caso, enche a boca para defender o Partido dos Trabalhadores (PT) contra a política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, figura muito admirada por Suely.

Deu tempo de passar rapidamente em casa, em Copacabana, dar um beijo e avisar a Suely que fosse com Leonardo para casa da mãe. Saiu em direção a um ponto com dois companheiros, ainda de terno, segurando o paletó com o polegar da mão direita por cima do ombro, vestindo pela última vez o uniforme de trabalho de jornalista. No caminho, ia pensando no impacto da brusca mudança, na dura e solitária vida clandestina que teria que enfrentar a partir de então. Não teria mais volta: era largar tudo, jornal, apartamento, mulher, filhos, cachorro se tivesse, os livros, os discos, os amigos que não estavam nessa, enfim, era virar outro, trocar de nome, de cara, de rua, de bairro.

Álvaro Caldas, após o sequestro de 1973. Foto: acervo pessoal.

Aquele 17 de dezembro de 1969 foi seu último dia de liberdade, antes de passar a viver clandestinamente no aparelho-apartamento da Tijuca, até fevereiro de 1970, quando foi preso. Passaria, então, dois anos e meio nos cárceres da ditadura, vivendo o pesadelo de outros milhares de perseguidos do regime. Álvaro perdeu, inclusive, o nascimento de sua filha do meio, Flávia.

A menina parece ter compreendido a situação dos pais, pois decidiu nascer justamente na noite de Natal, quando a repressão política havia afrouxado. Embora os oficiais a buscassem mais para encontrar o paradeiro de Álvaro, sua esposa também era militante e precisava agir com cautela. Sob um nome falso, Suely deu entrada na Maternidade Clara Brasbaum, em Botafogo, às 21h do dia 24 de dezembro. Na manhã do dia seguinte, já estava voltando para casa, pois a vida clandestina não concedia direito ao pós-parto habitual. Mesmo não tendo grande relevância no partido na época, Suely também era militante política e estava sendo procurada, especialmente por conta de Álvaro.

“Ela me protegeu a vida toda.”

“Eu dizia que a Flávia me protegia porque, primeiro, o dia que ela escolheu para nascer foi no 24 de dezembro quando a vigilância tinha se amainado. Segundo, a Flávia era um bebê que não chorava. Não chorava. Em nenhum momento. Depois que eu tive a Flávia, eu passei por 17 aparelhos. E a Flávia não chorava, nem mesmo recém-nascida.”, conta Suely. Brancaleone, como era chamada pelo pai, ainda protegeu a mãe mais uma terceira vez. Ao ser presa, Suely conseguiu convencer os oficiais de levar Flávia para a casa da avó. Sabendo que tinha dado à luz recentemente, foi poupada da violência que havia acometido Álvaro barbaramente no mesmo dia.

Um pouco mais tarde, quando Suely já havia sido solta, a pequena Flávia e o irmão mais velho, Leonardo visitavam o pai na prisão. O menino dizia orgulhoso aos colegas: “Vou visitar meu pai!” e um dia, com apenas 3 anos, contou a mãe que já sabia porque Álvaro estava preso: “Ele é como Tiradentes!”

Com Brancaleone, a situação foi mais complicada. Durante os primeiros dois anos e meio de vida, ela acostumou-se com a ideia de que o pai morava em outra casa. Quando Álvaro foi solto, a menina se surpreendeu quando ele disse que dormiria no mesmo apartamento da Anita Garibaldi: “Mas você não mora aqui!”

Em setembro de 2015, Flávia Caldas faleceu, após lutar bravamente com um câncer de mama. Álvaro lamenta e sente muita falta da filha que partiu ainda jovem, com 46 anos. Mas é Suely que se emociona toda vez ao lembrar: “Ela me protegeu a vida toda.”

“É terrível, é terrível. A gente não esquece, não.”

Desde sua criação, em 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) passou dois anos apurando as violações de Direitos Humanos ocorridas durante o período militar. De acordo com o terceiro relatório da CNV, entregue em 2014, são 434 vítimas fatais do período, sendo 191 mortos, 210 desaparecidos e 33 os desaparecidos cujos corpos tiveram seu paradeiro posteriormente localizado.

Em seu primeiro ano de governo, às vésperas do dia 31 de março de 2019, Bolsonaro proibiu a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) de utilizar os termos “golpe” e “ditadura militar”. Além disso, por ordem do presidente, a data também foi comemorada pela primeira vez depois de décadas. Em julho de 2019, Jair Bolsonaro contou ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, como o pai dele, militante de esquerda, desapareceu na ditadura militar. Ao ser questionado pela repercussão, Bolsonaro chamou de “balela” os arquivos oficiais da Comissão Nacional da Verdade.

“É terrível, é terrível. A gente não esquece, não.”, me responde Álvaro em tom sério quando lhe pergunto como é ser um ex-preso político vendo o discurso negacionista do período militar em ascensão. “Não sei porque teve esse retrocesso. Eu também fiz parte da Comissão da Verdade aqui no Rio, então o nosso trabalho era esse: reconstruir a nossa memória”, ele conta.

Diferentemente de outros países como Chile e Argentina, no Brasil não houve um processo eficaz de construção da memória coletiva. Boa parte disso se deve à Lei de Anistia, de 1979, que beneficiou tanto militantes políticos quanto torturadores. O resgate da história, a coleta de relatos, o agrupamento de dados sobre violações de Direitos Humanos veio depois com iniciativas como as da Comissão Nacional da Verdade. Nesse ponto, Álvaro é duramente crítico. “Isso ficou por baixo do pano, por baixo do tapete. E mesmo na redemocratização os presidentes FHC e Lula nenhum deles teve coragem de enfrentar o Exército.”

Anos mais tarde, Álvaro revisitou o Batalhão da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, devido aos trabalhos da Comissão Estadual da Verdade no Rio de Janeiro que ele integrou. Entrar na antiga sede do DOI-CODI trouxe à tona os momentos de terror e pavor vividos ali. Os corredores não estavam iguais, mas era possível reconhecer a estrutura do prédio onde a tortura foi institucionalizada como política de Estado contra os inimigos do governo. Defende que o prédio deveria ser tombado e se tornar um museu da memória do Brasil, como existem em outros países. “Mas o Exército permite? Não permite!”

Para Caldas, houve ainda um papel crucial da imprensa na consolidação do golpe de 1964. Jornais como O Globo e Folha de São Paulo apoiaram a Ditadura em seus editoriais e notícias. “Mais tarde, [com a redemocratiação] fez uma desculpazinha esfarrapada, mas ele [O Globo] defendeu tudo, o que é uma coisa escabrosa para um órgão de imprensa que mantém uma postura de liberdade e independência.” A falta de uma retratação adequada por parte da imprensa ter sido mais um ingrediente para o crescimento do discurso autoritário de extrema-direita.

Aos 80 anos, Álvaro ainda mora no mesmo apartamento na Anita Garibaldi, em Copacabana. O imóvel que seu pai comprou quando o jovem veio estudar no Rio guarda muitas lembranças; serviu de aparelho para muitos militantes e, mais tarde, foi onde ele e Suely criaram os filhos. “Isso aqui vai ser tombado”, brinca. Depois da terceira prisão, quando foi sequestrado em sua própria casa, ficou muito abalado. Chegou a pensar em se mudar, mudar de país, esquecer tudo, como muitos fizeram. De volta ao apartamento, passava as primeiras noites atento a qualquer barulho da vizinhança, ao som do elevador chegando, tudo lhe assustava.

Aos poucos, o medo foi dissipando e novas memórias foram sendo construídas. “Tenho memórias boas também. Tenho meus livros, minhas plantas, minhas esculturas.”, ele conta. Álvaro gosta de sair para uma caminhada, especialmente quando viaja com os netos para Teresópolis, e reunir pedaços perdidos de madeira. Ele junta as madeiras que acha pelo caminho, lixa e começa a montar as esculturas. Não faz nenhum curso, vai seguindo a intuição. Diz que já são tantas pela sala de casa que em breve me convidará para uma exposição das obras de arte.

Além das esculturas de madeira, o apartamento reúne grandes coleções de livros e CDs. Para ele, é importante ter essas coisas que são manuseáveis, tocáveis, cheiráveis e guardam história. Não é a mesma coisa que escutar uma música só pelo YouTube ou Spotify. “Quando eu quiser ouvir a Martha Argerich, que é uma pianista argentina excelente, quero escolher entre os melhores CDs dela. E aí fico ouvindo, fazendo minhas esculturas e trabalhando.”

Crachás de Álvaro Caldas. Foto: Hamilton Correia

Na parede do apartamento, um quadro com os crachás de todos os veículos que Caldas trabalhou ao longo de sua vida. O currículo de dar inveja a qualquer foca, tem redações desde o jornal Movimento, da União Nacional dos Estudantes (UNE) ao Jornal do Brasil (JB), onde chegou a Repórter Especial e se consagrou como jornalista. Seu primeiro estágio foi n’O Globo, de onde foi demitido após ser visto em uma passeata. Em seguida, foi para o JB por indicação de um amigo. Nessa época, já militava no PCBR e, à noite, também escrevia algumas reportagens para a Agência France.

Após sua prisão, foi difícil voltar para o mercado. Mesmo já tendo um nome na imprensa, a militância política havia queimado sua imagem. Foi o jornalista José Trajano quem o ajudou e lhe conseguiu um emprego no Jornal dos Sports. Daí em diante, Álvaro trabalhou em grandes redações: foi repórter nas sucursais do Estado de S. Paulo e do Diário do Comércio e Indústria (DCI). Chefiou a redação da sucursal da Folha de S. Paulo, foi editor da Última Hora, TV Globo e Tribuna da Imprensa. Depois da Tribuna, abriu uma pequena empresa de comunicação e se aposentou das redações. Hoje escreve uma coluna semanal no site Ultrajano. “Eu sou um pouco preguiçoso e um pouco rebelde. Não gosto de trabalhar em redação com ordens, com horário, prefiro trabalhar assim com liberdade. Tenho que escrever toda semana para a coluna, mas não tenho aquela coisa de chefia, ditadura.”

Além disso, é descrente do jornalismo praticado nos dias atuais. Segundo ele, o repórter foi substituído pela figura do provedor de conteúdo. “Pobre do repórter. Hoje ninguém mais vai para a rua, apurar alguma coisa. Alguém vai pra lá? Faz a distância, por vídeo…” Para ele, há uma grande precarização: o mesmo jornalista precisa escrever para o impresso, rádio, para a agência de notícias em vez de realizar um trabalho de apuração bem feito como deveria. “Na época do JB que eu trabalhei, tinham 40 pessoas na Geral. Sabe o que é isso? 40 pessoas!”

Antes de passar a se dedicar à sua coluna no Ultrajano, Caldas se tornou professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. A experiência da docência veio como uma surpresa. Jornalista formado no impresso, nunca tinha se visto dando aula, mas acabou ficando mais de 15 anos na PUC. Se apaixonou pela troca que havia em sala de aula, pelos olhos dos alunos que brilhavam quando ele entrava em sala e se apresentava: “Sou Álvaro Caldas, jornalista e escritor. Fui preso político no período da Ditadura Militar”.

Em entrevista recente à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Álvaro disse que as três profissões fazem parte dele. Tem alma de jornalista, mas hoje é o Álvaro Caldas escritor que prevalece. Atualmente, está trabalhando em um novo livro, Estação Doicodi, uma obra que ficcionaliza o que aconteceu lá dentro. O lançamento ainda deve demorar, me conta que está mexendo muito nele. “Tenho que tirar um pouco do jornalista que tem lá dentro e colocar mais do escritor. Jornalista atrapalha muito, quer meter o bedelho.”

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Giovana Kebian
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Written by Giovana Kebian

“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

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