Entregadores denunciam bloqueios indevidos nos aplicativos

Giovana Kebian
7 min readAug 30, 2021

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Fraudes de problemas para receber o pedido de novo, coibição de protestos e falta de comunicação são as principais razões dos bloqueios

Giovana Kebian

Entregadores do iFood. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

“O cliente recebeu a entrega de novo, o iFood ficou com o dinheiro e quem se ferrou foi o pai de família”, conta o entregador Ramon Pereira, de 24 anos, sobre como foi bloqueado permanentemente pela empresa iFood, a maior do ramo de delivery da América Latina. Após ter concluído uma entrega no bairro de Manguinhos, na Zona Oeste do Rio, o cliente reclamou no aplicativo que não havia recebido o pedido. Sem direito de resposta, Ramon teve seu CPF cadastrado suspenso da plataforma e não pôde mais realizar entregas. Segundo ele, o cliente que fez a falsa alegação, por outro lado, recebeu um novo pedido.

Entregadores denunciam bloqueios indevidos nos aplicativos de delivery, como iFood, Uber Eats, Loggi e Rappi. Os motivos variam, mas, em geral, ocorrem problemas de comunicação na entrega ou falsas alegações de não recebimento dos pedidos, como aconteceu com Ramon. Há também relatos de bloqueios que acontecem como forma de punição aos trabalhadores que realizam atos por melhores condições de trabalho.

Em junho de 2020, cerca de 200 entregadores de delivery ocuparam os dois galpões da Loggi, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio. Em protesto, eles exigiam que a empresa fornecesse máscaras e álcool em gel aos trabalhadores, equipamentos que só haviam sido distribuídos uma vez passados três meses desde o início da pandemia da Covid-19 no Brasil.

Dos 200 participantes, 50 tiveram suas contas suspensas por tempo indeterminado. Dez deles ajuizaram uma ação contra a Loggi, exigindo o desbloqueio imediato, indenização por danos morais e por dias não trabalhados.

O advogado Magno Moura Têxeira, responsável pela ação coletiva, foi procurado, mas não concedeu entrevista sobre o tema. Em uma reportagem da Gaúcha Zero Hora, do ano passado, o promotor alegou que a Loggi, assim como outras plataformas, poderia identificar os locais onde ocorrem manifestações por meio de georregenciamento, isto é, pela localização dos aparelhos móveis. Na última atualização do processo, consta que o caso foi transferido a uma das varas cíveis da comarca de São Paulo, por se tratar da cidade sede da empresa acusada. O Tribunal de Justiça de São Paulo ainda não deferiu liminar sobre a ação, após mais de um ano do ocorrido. A Loggi foi questionada sobre o caso, porém, informou que a empresa não se posiciona sobre processos ainda em andamento.

Um dos entregadores presentes no protesto era Ralf Alexandre Campos. Mais conhecido por seus colegas como “Ralf MT”, nome de seu canal no YouTube onde ele fala sobre questões trabalhistas envolvendo entregadores de aplicativos, Ralf já havia enfrentado um bloqueio da Loggi anteriormente. Ele conta que a empresa dispõe de um código de verificação toda vez que o cliente recebe o pedido, mas que ao realizar esta entrega, quem recebeu foi o porteiro do prédio. Horas depois, a cliente contestou que sua refeição não havia chegado e Ralf teve a conta suspensa por 3 dias. “Eu precisei imprimir um documento e ir até o local da entrega para conseguir a assinatura da cliente e ser desbloqueado. Mas essa corrida de ida e volta foi tudo por minha conta”, ele relata.

Com Matheus Feitosa, o contato com o cliente não adiantou. Ele foi fazer uma entrega pela Uber Eats em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, mas no pedido não constava o número do apartamento, apenas do prédio. Eram cerca de dez horas da noite e não havia mais porteiro no edifício. “Chegando lá, não consegui contato com o cliente pelo aplicativo e, como eram muitos apartamentos, não sabia para qual interfonar”, ele relata.

Matheus esperou cerca de 15 minutos e decidiu ir embora. No dia seguinte, teve sua conta suspensa. Pediu agendamento no escritório da Uber para contestar o bloqueio, mas lhe foi negado. “Eles confirmaram que eu tentei contato com o cliente, mas disseram que eu tinha que ter esperado mais tempo. Eu esperei 15 minutos e eles queriam que eu tivesse esperado 40. Alegaram que eu fiz uso indevido da conta e que eu não posso ser parceiro Uber nunca mais”.

Questionado se pensou em realizar um boletim de ocorrência ou entrar na Justiça contra a empresa, Matheus disse que não. “Como eu fui bloqueado, achei que ficaria por pouco tempo e que depois que eu fosse no escritório da Uber isso se resolveria. Depois que me negaram, eu deixei pra lá. Já tem três meses”. Atualmente, ele continua trabalhando como entregador, mas não mais com empresas de aplicativo de delivery.

Ramon diz que tampouco pensou em ir a uma delegacia ou recorrer à Justiça “É muito no escuro, a gente não tem certeza que vai conseguir. Até já ouvi falar de gente que fez isso, mas quem tem que pôr comida na mesa não tem tempo pra tentar. Vida que segue”

No entanto, já houve casos em que a Justiça proferiu liminar a favor dos entregadores. Em abril de 2021, a 14ª Vara Cível Central da capital paulista condenou a empresa Rappi a recadastrar em até 48 horas, sob pena de multa de R$ 500 por dia de atraso, limitada a R$ 50 mil, o entregador falsamente acusado de não ter deixado encomenda no local de destino. Além disso, a decisão previa que a empresa e o condomínio onde foi entregue a mercadoria arcassem, solidariamente, com indenização por danos materiais no valor de R$ 51 por dia em que o autor da ação ficou descredenciado do aplicativo, cerca de seis meses, e pagassem R$ 10 mil de indenização por danos morais.

Diego Fernando de Almeida deixou remédios encomendados na portaria do Condomínio Paulista Life, em Consolação, Zona Oeste de São Paulo. Horas depois, o cliente contestou o não recebimento, o que gerou o bloqueio do entregador no aplicativo. Diego retornou ao edifício e solicitou ver imagens das câmeras de segurança, mas o síndico do prédio negou seu pedido. “Intransigente, iníqua, bárbara. Ignora o sacrossanto direito de defesa do entregador e mesmo a prova de sua inocência. Apega-se ao seu poder absolutista de credenciar e descredenciar, mas ignora a lei do País em que atua”, escreveu o juiz Christopher Alexander Roisin sobre a empresa ré na sentença proferida.

De acordo com Diretrizes da Comunidade Uber Eats para o Brasil, realizar entregas de pedidos de maneira inadequada pode levar a suspensão da conta do “parceiro de entrega”. “Se forem relatados comportamentos que infrinjam estas Diretrizes da Comunidade, a investigação correspondente será realizada e dependendo da natureza da situação, sua conta no aplicativo do Uber Eats poderá ser desativada”, diz o texto. Não há, no entanto, um detalhamento sobre o período em que a conta ficará suspensa e se o entregador poderá recorrer à plataforma sobre este bloqueio.

A Rappi, por outro lado, prevê em seus Termos e Condições de Uso que poderá “unilateralmente revogar a autorização de uso em qualquer momento, se assim o desejar, desabilitando o entregador”. Da mesma forma, a Loggi e iFood asseguram em seus contratos que poderão inativar temporária ou definitivamente o acesso do entregador à plataforma, sem notificação prévia.

Questionadas sobre os principais motivos bloqueios de entregadores, a Loggi, a iFood e a Uber Eats informaram que não poderiam se posicionar sem a apresentação de um caso específico. A Rappi foi a única empresa que não obtivemos resposta. Por garantir a segurança dos entregadores citados nesta reportagem, não foi possível entrar em detalhes sobre os episódios. A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa a iFood e a Uber Eats, informou que cada empresa tem políticas próprias relacionadas ao tema, porém, todos os cadastrados na plataforma fazem a necessária adesão aos Termos, sejam entregadores, usuários ou estabelecimentos.

Ainda segundo a Amobitec, as empresas também dispõem de programas internos que buscam revisar todas as interações com o suporte para detectar padrões de comportamento fraudulento e prevenir o mau uso das plataformas. A iFood foi a única que entrou em mais detalhes sobre essas políticas e informou que possui espaço em seu site oficial para comunicação com os entregadores.

Para o pesquisador de uberização do trabalho do Instituto Federal de Minas Gerais, David Franco, as sanções excessivas dos aplicativos acontecem em um contexto de alto desemprego no mercado formal de trabalho e um aumento na procura por uma fonte de renda nos aplicativos de delivery e transporte. “Se há um excesso de mão de obra disponível, elas [as empresas] podem se dar ao luxo de desligar alguns trabalhadores de forma até injustificada porque são esses desligamentos arbitrários que muitas vezes fazem com que os demais, se mantenham ainda mais nos padrões da empresa. É uma forma de assegurar qualidade da força de trabalho do serviço que é oferecido”, ele explica.

O Brasil possui 14,7 milhões de desempregados, de acordo com dados da última Pesquisa Nacional de Amostra Por Domicílio Contínua (PNAD Contínua), do IBGE. Nesse contexto, muitas pessoas recorreram aos aplicativos para ter uma fonte de renda. Esse contingente adicional chegou 11,4 milhões de brasileiros, segundo uma pesquisa obtida com exclusividade pelo jornal Estado de São Paulo. O problema, segundo David Franco, é que ao se tornarem “parceiros” das empresas de delivery, os entregadores não são contratados sob regime CLT e deixam de ter uma série de direitos garantidos, como férias, décimo terceiro salário e fundo de garantia.

“Esses aplicativos fazem de tudo possível para não assumir a figura de empregador e assumir relações de trabalho formais”. Ele explica que como não são empregadoras, as empresas se isentam de arcar com custos operacionais, o que faz com que a renda dos entregadores caia até quase a metade com o aumento do preço do combustível, por exemplo. Na última sexta-feira (27), dezenas de motoboys e entregadores protestaram contra o reboque indevido de motocicletas e o preço da gasolina, em manifestação que fechou três pistas da Avenida Brasil, na altura de Irajá e foi em direção à Zona Sul da cidade. Protestos reivindicando melhorias à categoria têm se tornado cada vez mais frequentes desde o “Breque dos Apps”, quando os entregadores realizaram uma greve nacional em julho de 2020.

Mesmo considerando as condições de trabalho extremamente precarizadas, Franco não acredita que a formalização do vínculo sob o regime de CLT seja a melhor solução. De acordo com ele, isso reduziria significativamente a quantidade de empresas que fornecem uma fonte de renda, ainda que baixa, a milhões de pessoas. Ele opina que uma regulamentação deste tipo de trabalho seria o ideal, ressaltando a facilidade em provar o excesso de horas trabalhadas, entre outras irregularidades, uma vez que tudo fica registrado nos aplicativos. “Falta vontade política”, conclui.

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Written by Giovana Kebian

“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

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