Falsa transparência, cultura de massa e hipervisibilidade nas redes

Giovana Kebian
4 min readNov 21, 2018

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Por Giovana Kebian

A palavra “transparência” nos transmite uma sensação de honestidade. Ora, algo transparente é algo que não possui nada a esconder, que não tem segredos, que torna público todas as suas informações. A transparência, no entanto, atrelada a uma cultura de massa, pode ser um importante mecanismo de controle e disciplina das sociedades atuais.

Nossa sociedade se vê tomada pelas novas plataformas digitais de interação social. Essas novas modalidades tecnológicas, que surgem e se desenvolvem de maneira cada vez mais veloz e assumem uma importância global no cotidiano de milhões de usuários, podem ser responsáveis pela padronização de comportamento das sociedades e amenização das distinções culturais. Contudo, isso apenas se torna possível na medida em que essa era digital cresce sob uma cultura de massa, anteriormente definida. Em outras palavras, a globalização exige que os indivíduos se tornem cada vez mais semelhantes, que se comportem como uma massa, para aumentar a velocidade e quantidade de circulação de mercadorias, informações e capital. As redes se tornam, então,

“um fator homogeneizante das relações sociais, não havendo espaços para contranarrativas, só para uma forma: a narrativa irrefutável do igual, que seria a nova forma que a sociedade da transparência encontrou para vigiar seus habitantes, modelando-os por intermédio da transparência e vigia mútua nas redes.” (FERNANDES, 2017)

De maneira perversa, o ideal transparente entra em cena modelando o comportamento dos indivíduos. Nas redes, somos todos “transparentes”, compartilhamos cada conquista do nosso cotidiano em busca de aprovação e reconhecimento social. Colocamos nossas informações disponíveis ao público, queremos mostrar que não temos nada a esconder, que estamos livres de segredos e ocultações e que nossas vidas, ainda com as dificuldades apresentadas no dia a dia, no fim das contas vão muito bem, obrigada. Sem entrar no mérito da veracidade do que é exposto nas redes, em troca do excesso de informação compartilhada, a transparência nos fornece uma apropriação de nossos dados pessoais, que mais tarde podem ser utilizados para o controle massivo do comportamento social. O uso do Big Data já vem expressando seus efeitos, seja com a publicidade criteriosamente escolhida e destinada a um público alvo específico, seja em escândalos maiores, como foi o caso da empresa Cambridge Analytica e do Facebook nas eleições presidenciais estadunidenses de 2016.

A macroexposição revela também a outra face dessa nova sociedade da era informacional: a hipervisibilidade. A incessante busca pela aprovação alheia, pelos “likes” e pela quantidade de seguidores, apoiadores e capacidade de influência social no meio digital passam a ser os aspectos que definem esse novo status quo. A hipervisibilidade muda o foco do “ter” para o “parecer”, isto é, o que se torna fundamental nesse momento é aparentar ter muitos amigos, uma família feliz, um bom emprego e ser saudável, mas não necessariamente ter esses aspectos. A sociedade de cultura das mídias da hipervisibilidade trata-se, em última instância, de uma “sociedade do espetáculo”, pautada sobretudo pelas imagens e onde “o que é bom aparece e o que aparece é bom” (DEBORD, 2003).

Podemos pensar na hipervisibilidade também no sentido que Foucault nos apresenta com o modelo do panopticon. Em sua obra “Microfísica do poder”, o filósofo expõe como esse dispositivo assume uma arquitetura que consegue exercer seu controle por meio do excesso de luminosidade e visibilidade. O panopticon substitui a lógica do segredo, do ocultamento e do escuro da masmorra, pela lógica da disciplina através da constante vigilância. De maneira análoga, nas redes, há a presença de corpos dóceis que tem suas personalidades, ações e comportamentos moldados de acordo com determinado poder que se impõe pelo fato de estarmos sempre sendo observados mesmo sem saber por quem: o anonimato das redes e a existência dos stalkers (termo que se refere aos “perseguidores digitais”, isto é as pessoas que bisbilhotam e vasculham a fundo a vida alheia) são dois exemplos que evidenciam a vigilância via visibilidade.

Portanto, pode-se inferir que a “transparência” desse novo ideal de sociedade é uma noção um tanto quanto deturpada, na medida em que os indivíduos dessa sociedade não revelam seus segredos e buscam uma hipervisibilidade daquilo que pretendem aparentar. Além disso, o apoio dessa sociedade em uma cultura de massas possibilita a homogeneização de comportamentos e padrões –embora os indivíduos acreditem estar se diferenciando- e é responsável por um sistema de controle e vigilância nos novos moldes na era informacional.

Artigo escrito para a disciplina de Teoria da Comunicação II da Escola de Comunicação da UFRJ

Referências Bibliográficas

FERNANDES, Rhuann. Resenha do livro Sociedade da Transparência. Revista Habitus — IFCS — UFRJ — Volume 15, nº2, 2017
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/habitus/article/viewFile/17896/10849
Acesso em: 20 de nov. 2018

DEBORD, Guy. E-book: A sociedade do espetáculo. Projeto Preferia, 2003
Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/debord/1967/11/sociedade.pdf
Acesso: 20 nov. 2018

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 4ª ed. 1984.

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“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

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