Barbearia na Rua Real Grandeza, em Botafogo. Foto: Giovana Kebian

Já foi grandeza: a passagem do antro do comércio à gourmetização de Botafogo

Giovana Kebian
8 min readOct 24, 2020

Por Giovana Kebian

Por volta das oito da manhã, já se pode escutar o som dos carros e ônibus, junto com as intermináveis obras, na Rua Real Grandeza, em Botafogo. A barulheira contraria a promessa de uma “vizinhança silenciosa”, piadinha estilo “tio do pavê”, feita por todos os corretores de imóveis que se referem ao Cemitério São João Batista, no fim da rua. Entre a São João Batista e a Conde de Irajá, a Real se localiza em um ponto estratégico, quase na divisa de Botafogo com o Humaitá. E atravessando o Túnel Velho, próximo ao cemitério, chega-se facilmente à Copacabana.

O nome que dá uma impressão de coisa importante tem a ver com boa parte da formação da cidade do Rio de Janeiro: a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil. Com a chegada da Corte, a cidade inteira se beneficiou de serviços que foram criados. D. João VI, inclusive, mandou construir uma casa na Praia de Botafogo e o bairro, que até então ainda era alagado, começa a atrair a atenção de nobres comerciantes e diplomatas ligados à Família Real. Em 1826, surgem as ruas Nova de São Joaquim, mais tarde rebatizada de Voluntários da Pátria, e Real Grandeza, que até hoje homenageia à Família Real Portuguesa.

Trecho da Real Grandeza entre as ruas General Polidoro e Mena Barreto. Foto: Giovana Kebian

Dividida em quatro quarteirões, há um ponto de ônibus em cada um deles, onde passam apenas as linhas 434, 435, Troncal 6 e 463, quase todas vindas do centro da cidade em direção à Copacabana ou Ipanema. Há alguns trechos mais arborizados, principalmente no início, mas bem pouco se comparada às vizinhas Visconde Silva e Visconde Caravelas, onde as árvores estrondosas criam a impressão que está sempre de noite. Ao longo da rua, há uma variedade de farmácias, restaurantes a quilo, pequenas lojinhas de rua, um brechó, um cartório, um hortifruti local, salões de beleza, uma loja de móveis de madeira, um curso de idiomas bem no início, em frente à Escola Britânica, três bancas de jornal, oficinas de automóveis, alguns bares pé sujos e um posto de gasolina, mais no final, antes de desembocar no Túnel Velho.

Apesar do clima de comércio movimentado, é também na Real Grandeza onde cruzam algumas ruelinhas, com pequenas vilas de casas ou prédios baixos de até três andares que sobrevivem à era dos apartamentos. Parecem criar uma espécie de refúgio em meio ao tumulto cotidiano do bairro, resgatando a simplicidade da vida suburbana. Por outro lado, o antigo Batalhão da Polícia, que ficava logo na esquina com a Rua São Clemente, foi transformado em um condomínio de luxo, com apartamentos de até 244 metros quadrados avaliados em pelo menos 1.320.000 reais. Nesse mesmo trecho, pode-se seguir um pouco a São Clemente até se deparar com o Dona Marta, favela onde foi implantada a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e onde vez ou outra turistas realizam uma espécie de safári humano disfarçado de excursão, para apreciar a bela vista do alto do morro, o célebre restaurante Maria da Fé e tirar uma foto um tanto tosca com a estátua do Michael Jacksohn.

Uma pequena vila, na Real Grandeza. Foto: Giovana Kebian

É próximo à Real Grandeza onde, em épocas pré-pandêmicas, alunos da elite carioca de alguns dos melhores colégios da cidade — Santo Inácio, Escola Britânica e Corcovado — compravam maconha e haxixe na boca de fumo na saída do Dona Marta. E depois voltavam às suas casas, escondiam a droga dos pais e defendiam a militarização das favelas nas redes sociais, para acabar com a violência. A falta de segurança, inclusive, é uma das principais preocupações que assolam os real grandezenses.

“Tá muito perigoso isso aqui. Foi a única coisa que mudou, aliás. A violência. De resto tá igual”, conta Tarcísio, porteiro há 40 anos do edifício de número 74 da rua.

A esquina da Real com a Voluntários é o trecho mais movimentado. Logo depois de uma farmácia, do lado direito, há um Bob’s e, em frente a ele, uma banca de jornal. Enquanto esperam o sinal abrir, as pessoas escutam o mesmo anúncio “Miranda Joias: compro ouro, diamantes, cautelas e relógios” repetidamente. Passam pessoas de todos os tipos, jovens e velhos, negros e brancos, pessoas suadas e arrumadas, algumas sem máscara, algumas com o olhar aflito de quem teme a pandemia, motoboys e entregadores de aplicativos passam frequentemente de bicicleta. É difícil saber quem é morador e quem está apenas de passagem.

“Botafogo é um subúrbio disfarçado. Você vê, tem gente aqui que não tem o que comer, mas se acha porque mora na Zona Sul. Tem colégio caro, de seis mil reais a mensalidade e duas favelas de cada lado [ladeira do Tabajaras e o Morro Dona Marta]. A contradição tá em tudo quanto é lado.”

Fábio, de 40 anos, trabalha há seis anos na banca dessa mesma esquina. Quando me apresento como estudante de Jornalismo e peço uma pequena entrevista, ele diz que “não tem tempo para essas coisas” e que “hoje tá complicado”. Olho em volta o movimento mais vazio do que costume para um final de tarde em Botafogo. Insisto um pouco e pergunto se ele achava que a rua tinha mudado muito nos últimos anos. “Mesma coisa”, me responde diretamente, “mudou o fluxo de pessoas depois que Furnas saiu daqui”. Ele se refere à Furnas Centrais Elétricas S/A, empresa subsidiária ao Ministério de Minas e Energia, por muito tempo situada no segundo quarteirão da rua. No ano passado, no entanto, foi aprovada a mudança da sede para o centro da cidade. “Furnas sustentava o comércio de Botafogo inteiro”, exagera Fábio, com uma certeza de quem entende do que está falando.

Pergunto qual é, então, o perfil dos transeuntes da Real Grandeza. “Não tem perfil, tem gente de tudo quanto é tipo”, ele me diz. “Botafogo é um subúrbio disfarçado. Você vê, tem gente aqui que não tem o que comer, mas se acha porque mora na Zona Sul. Tem colégio caro, de seis mil reais a mensalidade e duas favelas de cada lado [ladeira do Tabajaras e o Morro Dona Marta]. A contradição tá em tudo quanto é lado.” Peço, por fim, para tentar definir a rua em uma palavra. “Uma palavra? Pô, aí você me pegou…”, ele se surpreende, mas depois arrisca, entre risos: “Já foi grandeza!”

Confeitaria Casa Imperial, na Rua Real Grandeza, em Botafogo. Foto: Giovana Kebian

Atravessando a rua, está a histórica Confeitaria Casa Imperial, a mais antiga do bairro. Sob uma fachada verde-água exagerada, o estabelecimento se tornou uma espécie de lanchonete de um lado, mercearia de outro e padaria no fundo. Os letreiros trazem as indicações “DOCES E SALGADOS ESPECIAIS”, “CONFEITARIA IMPERIAL” e “SOPAS E CALDOS” com uma tipografia estilosa sem chegar a ser cafona. Tudo é muito limpo, iluminado e organizado. Uma roleta separa a parte da lanchonete do restante da padaria, onde os fregueses recebem uma comanda e se sentam em cadeiras amarelas e brancas junto às delicadas mesas de madeira para dois. Eles pedem sucos naturais da fruta e comem croissants integrais. Do outro lado, na mercearia, são vendidos produtos veganos, com pouco açúcar e sem glúten. Claro que ainda há os deliciosos sonhos, repletos de creme e calorias, pães e salgadinhos de todos os tipos e os bolos confeitados continuam expostos na vitrine, mas é impossível não notar a atmosfera gourmet que foi instaurada após a reforma.

Em 2013, os antigos sócios da Casa Imperial decidiram passá-la adiante. Fundada no início do século XX, por imigrantes portugueses da região de Viana do Castelo, a antiga confeitaria talvez compartilhe apenas o mesmo nome com a nova. Eu que nasci, cresci e moro há 21 anos no mesmo endereço da Real Grandeza, me lembro de ir à Imperial aos domingos comprar um frango de padaria, quando não havia nada para o almoço. Trazia uma fachada bem antiga com uma coroa ao meio dos dizeres “Casa Imperial”. Aquela coroa era meu ponto de referência quando criança para saber que estava perto de casa. Lembro que os bolos estampados na vitrine ficavam em um suporte giratório ao lado dos frangos, composição bastante desconexa. Para comer lá dentro, tinha que se sentar no balcão central, compartilhado com os demais fregueses e de frente para os funcionários. Não tinha nada de roleta com comanda que separava a lanchonete do restante do estabelecimento.

A padaria era uma só e pulsava no coração de Botafogo.

Bolos na vitrine da Confeitaria Casa Imperial, na Rua Real Grandeza, em Botafogo. Foto: Giovana Kebian

O frango era cortado pelo Seu Orlandino Molina, já um senhorzinho. Aliás, todos os funcionários da confeitaria eram bastante idosos, pessoas de confiança que trabalhavam na casa há pelo menos 30 anos. Quando entro na confeitaria, me dirijo a dois funcionários no fim da loja. “Há quanto tempo vocês trabalham aqui? Poderiam me contar um pouco sobre a história da padaria?”. Nenhum dos dois tinha sequer um ano de casa. Acabo conversando com Fabrício Lins, o gerente, um rapaz novo de 27 anos, que me conta: “Trocaram todos os funcionários, mas a clientela não mudou. Tem bastante gente da clientela antiga.” Então, lhe pergunto se ele sabe algo da antiga Imperial e o que, na opinião dele, mais mudou nos últimos anos. “Essa padaria é super tradicional, foi a primeira de Botafogo. Agora tá mais atualizada, mais contemporânea, antes era uma coisa mais voltada para mercearia.” Ele ainda acrescenta, confirmando a fala anterior de Fábio, da banca de jornal. “Aqui não tem clientela específica, tem uns que sempre vêm, normalmente um perfil mais idoso, mas tem de tudo.” Os fregueses fiéis, agora já idosos, são provavelmente antigos moradores de Botafogo. “Ah, outra coisa que mudou também foi a lanchonete que dá pra sentar e comer.”

“Acho que mudou tudo, na verdade, a única coisa que ficou foi o relógio.”

Antiga faixada da Confeitaria Casa Imperial e o relógio de madeira, junto à placa “A quem serve, prudência. A quem é servido, paciência”. Fotos do blog Saudades do Rio

Olho para cima, e está o imponente relógio de madeira, colocado desde o princípio na padaria. Trazido de Portugal, ele carrega ainda os dizeres “Albino Costa & Cia”, nome dos fundadores da Imperial. Em outros tempos, uma placa, também dos anos 1920 dizia “A quem serve, prudência. A quem é servido, paciência”. O relógio chama a atenção, como um peixe fora d’água em meio a um estabelecimento completamente novo, limpo, gourmet, vegano, sem açúcar, sem glúten e sem lactose. Saio da confeitaria e olho o restante da rua, há uma barbearia daquelas modernas, que se toma cerveja enquanto corta o cabelo, de um lado. Um bar moderninho com banquinhos altos e petiscos caros, de outro. Lembro dos grandes edifícios de luxo contrastando com as pequenas vilas que resistem em meio ao caos. Lembro de Furnas e de todos os funcionários que frequentavam religiosamente a Imperial e o Restaurante Adriano, outro clássico da Real Grandeza. E penso ainda, no meu próprio prédio, onde despediram-se alguns dos porteiros, pois a portaria eletrônica já dava conta do recado.

Restaurante Adriano, na Real Grandeza. Foto: Giovana Kebian

Dizem que Botafogo é um bairro de passagem. E na passagem do tempo, nem mesmo a tradição permanece para contar história.

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“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

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