Rádio Santa Marta FM: história, contra-hegemonia e legado
Esse texto é uma adaptação do artigo “Rádio Santa Marta: o que restou? — Análise crítica sobre seus desdobramentos” escrito por Giovana Kebian, Juan Facuri e Ramon Vellasco para a disciplina de Comunicação Comunitária da Escola de Comunicação da UFRJ.
Criada em 2010, a rádio comunitária Santa Marta FM funcionou por quase um ano de maneira extremamente ativa, sob a frequência 103,3 Mhz. Era impulsionada por moradores do morro Dona Marta, localizado na Zona Sul do Rio de Janeiro. No dia 3 de maio de 2011, entretanto, uma denúncia anônima fez com que a Polícia e a Anatel levassem o transmissor e fechassem a rádio.
O que aconteceu com a Santa Marta FM não representa um caso isolado quando se trata de rádios comunitárias. Jogadas à margem da ilegalidade e sem receber a devida atenção do poder público, esses veículos encampam uma constante luta pelo direito à comunicação e à liberdade de expressão.
Por isso, a quase dez anos da criação da rádio, este texto busca resgatar a história da Santa Marta FM e realizar uma análise crítica sobre as dificuldades enfrentadas na época e os desdobramentos e impactos na vida da comunidade vistos até hoje.
Em primeiro lugar, é importante entender os fatores que motivaram a criação da rádio. Segundo Peruzzo (2003), a mídia comunitária “é aquela gerada no contexto de um processo de mobilização e organização social dos segmentos excluídos (e seus aliados) da população”. No Rio de Janeiro, a violência, a falta de saneamento básico e a estrutura precária das favelas tornam a vida dos periféricos pautada na necessidade de sobrevivência. Dessa forma, a rádio Santa Marta surge como necessidade de mobilização e resistência por parte da comunidade local, uma vez que pautava questões que afligiam a população do Santa Marta, de modo a provocar questionamentos e cobrar respostas das autoridades.
É importante destacar que em 2008, havia sido implantada no morro a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Rio de Janeiro. Essa política de segurança até hoje é entendida como um intensificador dos conflitos na favela por muitos moradores e ativistas de movimentos sociais. Por isso, é bastante emblemático que a rádio tenha surgido dois anos após a implementação da UPP no morro e, não à toa, o veículo foi um importante articulador de denúncias contra a violência policial.
Além disso, uma vez que a programação da rádio era produzida pelos próprios moradores e direcionada à favela, o veículo também exerce um papel de contraponto à narrativa da mídia tradicional. Como bem afirmou o repper Fiell — o princial líder articulador da rádio — em um trecho de seu livro:
“Nessa luta de classe que vivemos temos que saber para quem a mídia se comunica e como ela faz isso. É muito interesse, comprometimento, que os jornais têm com os capitalistas” (FIELL, 2011, p.54)
Há alguns debates sobre a questão da autenticidade das rádios comunitárias e sobre os quesitos que tornam ou não uma mídia comunitária. “O que permite conceituar um veículo como comunitário não é a sua capacidade de prestação de serviço e sim sua proposta social, seu objetivo claro de mobilização, vinculado ao exercício de cidadania.” (PAIVA, 2003, 140)
Resgatando o processo de surgimento da Rádio Santa Marta FM, fica claro, portanto, que se tratou de um veículo comunitário, uma vez que essa luta por cidadania, com destaque para luta pelo fim da violência policial, esteve presente desde o início de sua criação.
Breve história da Rádio Santa Marta
Foi a partir da doação dos equipamentos e de um transmissor pelo cantor e compositor Marcelo Yuka que a rádio entrou no ar. Os programas e suas temáticas eram definidos coletivamente através de reuniões quinzenais. Havia uma grande diversidade: programas infantis, musicais, de mulheres, sobre Hip-Hop, com debate político etc.
Não havia um eixo temático predominante, poderia se falar sobre qualquer coisa, uma vez que a iniciativa fosse apresentada na reunião. Fiell nos alerta, porém, que determinadas propostas poderiam ser contestadas caso possuíssem um discurso de ódio. Isto é, ainda que houvesse o espaço democrático para proposição de novas vozes, a rádio apresentava seus limites que correspondiam aos próprios ideais defendidos por ela.
A rádio também enfrentou dificuldades em relação às questões de infra-estrutura, financiamento e remuneração dos comunicadores. Realidade que existe como em qualquer outra rádio comunitária no Brasil, pois, por falta de investimentos externos e dificuldades impostas pela própria lei brasileira, as rádios comunitárias se veem em um ambiente asfixiante e quase que insustentável, diante de um contexto em que a questão de sustentabilidade econômica das rádios sai, geralmente, do próprio bolso dos comunicadores populares.
No caso da Rádio Santa Marta FM não foi diferente: o espaço da rádio era alugado e precisava ser pago todo mês por aqueles colaboradores fixos da rádio, ainda que recebessem doações e apoios de organizações e pessoas que resolvessem ajudar.
A falta de recursos também afetava a questão da participação. O fato do trabalho dos colaboradores da rádio não ser remunerado acabava desincentivando outras pessoas a participarem de maneira voluntária. O trabalho da rádio acabava dependendo do envolvimento de determinados participantes, como era o caso de Fiell, que ficava todos os dias no espaço da emissora. Nesse sentido, a legislação brasileira se caracteriza como um grande inimiga das rádios comunitárias, pois ela exige que o trabalho desses veículos não tenha fins-lucrativos e nem financiamento externo. Dessa forma, proíbe a veiculação de anúncios publicitários e, consequentemente, dificulta as formas de arrecadação para manutenção do veículo.
Ilegalidade e contra-hegemonia
A questão da legalidade das rádios comunitárias foi central na história da Rádio Santa Marta FM, não à toa, foi justamente por estar na ilegalidade que a rádio acabou. Fiell lembra que eles haviam acabado de entregar os documentos para solicitar a outorga da rádio, quando, a partir de uma denúncia anônima, a Anatel e a Polícia Federal fecharam a rádio, levaram o transmissor e prenderam ele e mais outros companheiros.
O caso se tornou ainda mais emblemático porque, ironicamente, ocorreu no dia 3 de maio de 2011, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Em outras palavras, esse episódio conseguiu ilustrar de maneira bem clara que a liberdade de imprensa e de expressão no Brasil não é uma realidade como está prevista na Constituição Federal que garante esses direitos.
É importante, portanto, compreender o fechamento da Rádio Santa Marta FM como mais um episódio de luta por reconhecimento e legalização das rádios comunitárias.
“Se fosse uma rádio evangélica, ou uma rádio que concordasse com tudo que a grande mídia fala, ninguém ia ficar perturbando pra fechar”
As mídias comerciais tradicionais são importantes articuladoras de “uma forma de poder caracterizada por uma postura totalizante, generalizada, mas que se dá com o consentimento ou aceitação dos demais” (PAIVA, 2008, p. 164). A essa forma de poder denominamos hegemonia. O movimento das rádios comunitárias opera, portanto, de maneira contra-hegemônica, uma vez que assume o papel “de fazer pensar, o de propiciar novas formas de reflexão, com o objetivo precípuo de libertar as consciências” (PAIVA, 2008, p.166).
Ao compreender as rádios comunitárias como atores políticos que ameaçam esses grandes monopólios da comunicação, percebe-se que o Estado atua na repressão desses veículos de modo a manter sua hegemonia, ou seja, de modo a calar vozes que podem despertar a consciência da sociedade e gerar transformações sociais indesejadas.
Para Fiell, essa percepção é bem clara, pois ele opina que a denúncia contra a rádio não foi feita apenas porque a emissora estava na ilegalidade, mas porque o conteúdo abordado e a linguagem utilizada causavam um incômodo. “Se fosse uma rádio evangélica, ou uma rádio que concordasse com tudo que a grande mídia fala, ninguém ia ficar perturbando pra fechar”
Legado
Em entrevista realizada com o presidente da Associação de Moradores do Morro Santa Marta, José Mário Hilário, ele opina que “o maior legado da rádio é o que o próprio nome já diz, rádio comunitária. Ela era comunitária. Agregava todos os segmentos da comunidade pra externar os seus trabalhos, sua arte, sua cultura.” A percepção de José é que o fechamento da rádio foi uma grande perda para a comunidade. As pessoas sentiram falta dos programas, pois perceberam que era um importante veículo para moradores falarem para moradores.
A Rádio Santa Marta representou não apenas um espaço de trabalho social para a comunidade, mas também de socialização entre as diversas gerações de moradores na comunidade. Portanto, podemos entendê-la como um espaço importante para o fortalecimento de identidade da favela e de seus moradores.
Fiell afirma que ainda hoje ele é questionado sobre o retorno da rádio. Para ele, é evidente que a comunidade ficou mais unida e se despertou para lutar por seus direitos. O que restou da rádio Santa Marta foi justamente o sonho de voltar a ter um veículo com a capacidade de permitir que seus moradores pudessem exercer a luta por cidadania de maneira eficaz. Ele comenta algumas outras experiências de mídias comunitárias, mas afirma que são iniciativas pontuais, diferentemente da rádio, que foi um projeto de transformação social.
Ademais, em nossa ida ao Santa Marta, para realizar as entrevistas, foi comum que um ou outro morador, ao escutar a conversa, opinasse também sobre a rádio. E as falas convergiam para um mesmo sentido: o da saudade. “Se teve uma coisa que deu certo nesse morro, essa coisa foi a rádio”, comentou um morador, cujo o nome não conseguimos descobrir.
Por tudo isso, fica claro que o legado da Rádio Santa Marta FM é inegável. Os bons tempos da emissora permanecem na memória dos moradores e moradoras do Dona Marta e alimentam a esperança de um dia voltarem a ter um novo veículo com a potência, o alcance e a capacidade de envolvimento da comunidade, como foi o caso da rádio.
Referências Bibliográficas
FIELL, R. Da favela para as favelas. Rio de Janeiro: Coletivo Visão da Favela Brasil, 2011.
HISTÓRIA DA RÁDIO SANTA MARTA EM LIVRO. LECC — UFRJ. 08/09/2011.
Disponível em:
https://leccufrj.wordpress.com/2011/09/08/historia-da-radio-santa-marta-em-livro/ Acesso em: 10/07/2019
MALERBA, J. P. Rádios comunitárias brasileiras: breves considerações históricas e legais. In: GOMES, Gustavo França; BRAVO, Maria Inês Souza. Rádios comunitárias no Rio de Janeiro: perspectivas e desafios. Rio de Janeiro: Palavravoa, 2013.
PAIVA, R. Contra-mídia-hegemônica. In: COUTINHO, E. G. Comunicação e contra-hegemonia: processos culturais e comunicacionais de contestação, pressão e resistência. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008.
PAIVA, R. O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo. Rio de Janeiro: Mauad,2003.
PERUZZO, C. M. K. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitária no Brasil. Anais do 26. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte-MG, setembro de 2003. São Paulo: Intercom, 2003
SÁ, E. A voz do morro Santa Marta não deve ser calada. LECC — UFRJ. 07/05/2011.
Disponível em: https://leccufrj.wordpress.com/2011/05/07/%e2%80%9ca-voz-do-morro-santa-marta-nao- deve-ser-calada%e2%80%9d/ Acesso em: 10/07/2019
SARAIVA, L. Rádio Santa Marta — Documentário sobre a rádio comunitária. 2011. (9m33s)
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2zvAFq7xvnQ Acesso em: 10/07/2019.