Sobre despedidas e afetos

Giovana Kebian
3 min readApr 24, 2020

--

Por Giovana Kebian

Quinta-feira nasceu Antonio. Tom foi amado desde quando era sementinha na barriga de Karen. Me lembro até hoje: dois dias antes de minha partida para a Espanha, quando meu pai urrara de alegria ao descobrir que seria avô. Na hora também me deu um sentimento no peito, uma coisa que nunca havia sentido antes.

Criança nova na família traz isso, uma alegria inesperada que vem de algum lugar que a gente nem sabia que existia. Faz a gente esquecer briga, implicância ou qualquer coisa que seja porque quer estar junto e acolher quando o novo membro chegar.

E assim foi o ano de preparação para o Tom. Eu, que fui neta descaçulada por minha prima Marina e, mais tarde, por Artur, Ana Clara e Luiz Guilherme, já sabia bem como era quando um pedaço de gente — que nem gente ainda é — resolve aparecer em nossas vidas. De repente, todas as atenções se voltam a eles. Mas nunca havia visto emoção tão grande na família como a chegada de Antonio.

Parece que Tom veio dar o tom que faltava para a família. Veio selar a nova etapa que vinha se concluindo há alguns anos. E pensar que chegaria meu sobrinho Tom deixava o coração mais quentinho, mesmo em tempos tão difíceis como em um isolamento social devido a uma pandemia.

Terça-feira foi dia difícil de engolir. Meu tio Lucas, de 56 anos, é portador de síndrome de down. Quando criança, o chamava de “chinezinho”, devido à fisionomia dos olhos que a doença lhe provocava. Lucas sempre esbanjou alegria. Era muito inteligente e realizava diversos trabalhos manuais em sua escola de “gente especial”, como dizia minha tia.

Lucas era muito querido e queria muito à todos. Colecionava amores e, ao ver qualquer moça bonita, não hesitava em lhe apresentar como sua namorada. Mas sua paixão verdadeira era uma só: Clube de Regatas do Flamengo. Meu pai, também rubro-negro doente, aguardava ao final de cada jogo uma ligação sua. “O que? O Flamengo ganhou do Botafogo? E quem fez o gol?”. Eles vibravam felizes ao telefone após cada vitória porque as ligações nunca aconteciam depois das derrotas.

Mas acho que, acima de tudo, Lucas era companheiro fiel de minha avó. Impedia que Dona Eny vivesse à sombra da solidão como tanto acontecia com outras avós após se tornarem viúvas. Acompanhava vovó no seu dia a dia. Nos Natais, quando a família toda se reunia, minha avó desempenhava o papel da lareira que une todos a sua volta. E Lucas era seu fogo.

Ele dizia que como seu pai havia morrido, quem mandava na casa era ele, o “Omo da casa”. Mas acho que Lucas se esquecia que era para sempre nosso menino. Mesmo não sendo criança nova, Luquinhas sempre trazia alegria à nós em todos os cantos que fossem. E como Tom, trazia essa sensação de esquentar o peito e selar os laços da família.

Talvez o que toda família precise é de um Lucas que relembre a eterna criança que vive em nós. Ou talvez, na impossibilidade de eternizar lembranças, precisamos que surjam novos tons. Tons que venham para renovar nossos afetos, esmaecer as dores e celebrar, ainda que difíceis, as nossas despedidas.

“Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia a lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração.” (Os da minha rua — Ondjaki)

--

--

Giovana Kebian
Giovana Kebian

Written by Giovana Kebian

“Sé gritar hasta el alba cuando la muerte se posa desnuda en mi sombra.” | Jornalismo — UFRJ

No responses yet